Entrevista a Manuel Cajuda (treinador): "Se tivesse mais juízo, há dez anos tinha cilindrado"

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Que expectativas para esta época?

Se eu disser boas, as pessoas poderão logo pensar no 5.º ou 4.º lugar, na luta pela Europa. Eu tenho uma perspectiva diferente. É fazer uma época boa, tranquila. O Vitória veio da II Divisão, do pior período da sua história. Quando cheguei, o Vitória estava mais perto da III divisão do que da primeira. O fundamental é recuperar a estrutura que tinha, de equipa acima do meio da tabela e que com alguma frequência lutava pelos lugares europeus. Mas, nos últimos dez anos, o Vitória esteve três vezes para descer. Acho que deve acima de tudo procurar estabilidade, este ano ganhar bases para poder jogar mais alto.

O que é preciso então para dar estabilidade e crescimento?

O Vitória perdeu quase tudo, o que não perdeu foram os dedos, porque ficou o património, mas a filosofia perdeu-se. Quando cheguei, a média de vida dos treinadores era de três meses e 16 dias - felizmente já passei essa média -, nos dois últimos anos passaram mais de 54 jogadores, os últimos valores vindos da formação escassearam... Bateu no fundo. Pior não podia acontecer. Parece que voltou a estabilidade, esta direcção está a fazer um excelente trabalho, mas ainda há muita coisa para fazer. E é normal que o Vitória tenha uma sede enorme de reconquistar oque lhe pertence u. Mas neste momento não é o mais importante. As coisas fazem-se com método. Não sou daqueles que diz que vamos para a Europa. Vamos começar o campeonato e vamos fazer muita coisa boa e outras que não gostaríamos de fazer.

Por exemplo?

Não digo que ficaria satisfeito, mas mais realista se tivéssemos perdido jogos de preparação. Os monstros criam-se e eu não quero um monstro, mas uma realidade. E tudo parece muito bonito, porque contabilizamos 18 jogos sem perder. Há seis meses que não perdemos, sofremos três golos em 18 jogos [antes do 4-2 à Naval], parece que o Vitória nunca vai ter uma pane, nunca vai bater numa coisa qualquer. E quando vier a primeira derrota...

É preciso travar o entusiasmo?

É viver dentro da realidade presente. O realismo é uma coisa que começou a fazer parte da minha vida. Durante algum tempo senti necessidade de me pôr à frente com algum irrealismo para mobilizar as pessoas, dei muito aos clubes e recebi muito pouco. Se tivesse sido mais egoísta, não teria dito algumas coisas que disse, fui criticado por falar demais. Houve necessidade de cair no ridículo muitas vezes, e eu sentia que estava a fazê-lo, mas tinha essa necessidade.

Teve de ser assim?

Teve de ser desigual, não deve ser desigual, mas não me arrependo. É evidente que ganhei anti-corpos em muitas franjas da sociedade desportiva. Isso de certo modo prejudicou-me muito como treinador de futebol. Há dez anos, se tivesse tido, entre aspas, mais juízo teria cilindrado todo o futebol português. Não eram outros, seria eu. Mas fiz um pacto com o futebol português: servir-lo e não me servir.

E essa porta do tempo fechou-se para si, já não se pode abrir?

Não, fechou-se completamente.

Já não pode ser um treinador acima do 4.º lugar?

Penso que não. Não é por mim, é porque o futebol português piorou muito nos últimos dez anos e não dentro dos relvados. Eu apareço muitas vezes de gravata, mas acho que há gravatas a mais no futebol português.

Há muitos tecnocratas no futebol?

Muitos e cada vez mais. Há dias vi um dirigente de um clube ir ao aeroporto buscar um jogador de futebol e trazer um jogador de um adversário.

Isso foi o Eurico Gomes (Sporting)?

É verdade, estava em casa e vi-o na televisão. Imagine se fosse eu...

Estamos a assistir a uma metamorfose, está mais amargurado?

Não, não. É a realidade. Continuo a ter o mesmo feitio, até porque seria eventualmente uma desilusão para as milhares de pessoas que são adeptas da minha forma de estar, e eu sei que tenho adeptos. Seria uma traição para quem sempre gostou de mim. Estou é muito mais rotinado. Antes disparava logo ao primeiro tiro, agora deixo-os gastar as balas.

Nunca vai deixar de responder?

Não, não. Mas uma coisa admito, hoje estou muito mais experiente. Permita-me dizer isto: os dirigentes dos clubes quando apostam em treinadores novos fazem-no sempre com a justificação errada, de que o novo é ambicioso. Muitos desses dirigentes são da minha idade e até mais velhos e eu pergunto-lhes se continuam ambiciosos. Eles dizem que sim. Parece que a ambição é um estatuto apenas de dirigentes, não dos treinadores. Eu não tenho o direito de ser ambicioso, de comprar um carro novo, uma vivenda nova, de ter uma equipa boa, de ser campeão porque tenho 56 anos.

O Jesualdo é um bom exemplo?

Foi o melhor contributo que pode haver. Se analisarmos, o Jesualdo nem tem uma carreira brilhante de sequência, masdepois chegou ao Porto e foi campeão, o que me parece perfeitamente normal e lógico. Não vejo ninguém novo a singrar, a não ser eventualmente o nosso José Mourinho, que já passou dos 40 e que não foi fruto de um milagre, mas de uma sequência lógica de uma pessoa inteligente que passou 12 anos em lugares secundários até se lançar a solo. Fez muito bem porque ficamos todos felizes por isso. Eu pelo menos estou.

Chateia-o que se divida entre o Mourinho e os outros?

Não, porque o José Mourinho não fomentou a essa divisão. O Zé quer ganhar, como todos querem ganhar. Sei que há muita gente que espera que ele não ganhe para lhe poder bater, mas essa é uma visão malfeitora.

Quem são os grandes treinadores portugueses?

Temos grandes treinadores em Portugal, só que o futebol tem sido padrasto e há dois anos foi-o para mim, porque tive de emigrar porque o meu espaço tinha acabado, como acabaram com o espaço de uma série de treinadores, como o Vítor Manuel, o João Alves, que foi para a formação do Benfica e eu acho muito bem.

E até o Manuel José, com quem esteve no Egipto?

Sim, o Manuel José que no Egipto ganha tudo. Se eu tivesse ficado mais anos no Egipto seria o eterno Poulidor [ciclista que ficou mais vezes em segundo na Volta à França] do Egipto, porque o Manuel José ganha tudo.

O Egipto surgiu depois de uma época muito má, o de 2004/05, em que deixa o Marítimo após a 1ª jornada. Nunca explicou, porquê?

Nem quero explicar.

E depois veio o Beira-Mar, saindo também pouco depois...

Fui para o Beira-Mar por amizade ao presidente Mano Nunes e teimosia de voltar depressa ao activo. Maldita a hora em que fui, e não pelo Beira-Mar, que é um clube a que um dia gostava de voltar. Mas pela corja de maus profissionais que fui encontrar naquele ano, os piores vagabundos que encontrei no futebol.

Foi o seu período horribilis?

Foi, foi. O da Naval, a seguir, já não é.

A seguir à Naval segue-se o exílio?

Seguiu-se o que era uma tentação de há muitos anos e que vou voltar a repetir: emigrar.

A II Divisão foi um passo atrás para dar dois em frente?

Actualmente na I Divisão sou o que tenho mais jogos, dos que estão em Portugal. Vou tentar ultrapassar o Manuel José, acho que faltam 13 ou 23 jogos. Mas sou o treinador há mais tempo consecutivo, de sempre. Nenhum outro conseguiu tanto tempo, e basta recordar que nos 25 anos de treinador que não há um início de época em que eu estivesse, nunca. Se olharmos ao Vitória não foi um passo atrás, se olharmos à II Divisão foi. Mas o Vitória até na III Divisão eu treinava. Obviamente, meti-me numa bela alhada: se não subisse era o meu fim.

Tinha consciência disso?

Tinha, as pessoas iam dizê-lo. Acabava praticamente em Portugal. Este foi o quadro mais bonito que eu pintei.

Por se sentir acossado?

Não, porque o senti mesmo. Há muito benfeitor da maldade, destrói-se porque se quer destruir. Eu quero que os meus adversários sejam sempre melhores, quero vencer por ser melhor do que eles. Ser um iceberg no meio da mediocridade não vale a pena.|

Que tipo de treinador é?

Mais maduro. Que ama o público.

Disse que preferia 18 equipas...

Ficou por provar que é melhor a 16.

A competitividade baixou?

A qualidade dos grandes diminui.

E o regime fiscal de futebolistas?

Ninguém aponta a cabeça a ninguém para seguir a carreira. Devia era estudar-se soluções para quando se acaba. Mas devem descontar o mesmo que os outros.

E a formação?

Em Portugal, é um bluff. No dia em que deixar de haver subsídios para a formação, acaba-se.

Taça da Liga?

Chegou em boa altura. Acho que se joga pouco em Portugal.

Arbitragem?

Colou-se-lhe o chavão do Apito Dourado. Está melhor do que há 15 anos. Os árbitros são melhores e mais independentes. Agora há pessoas que têm a vida estabilizada e não precisam de mais ou menos tijolo.

Horas de jogos, bilhetes?

Os bilhetes, caros. Os horários dos jogos são uma perfeita aberração.

Cajuda na selecção nacional?

Impossível. Já tive com um pé na selecção de sub-21, recentemente, e nem quero falar nessa história.

E nos três grandes?

Continua a ser impossível. Não tenho padrinhos. Mas não vou morrer frustrado se isso não acontecer.

Esteve perto de um há uns anos?

De dois deles, em anos diferentes.

Quais são as suas medalhas?

Nem são os resultados, são os amigos e o respeito que ganhei.

E os falhanços?

Ter dado de mais de mim, não ter sido egoísta. Só há uma coisa que não fiz: ser campeão. E terem deturpado a minha carreira por eu ter assumido algumas posições.

Sente-se obcecado por não ter jogado a Taça UEFA?

Acho engraçado que sempre que chegámos à Taça UEFA acabei por sair. Há treinadores que jogam na Taça UEFA, eu levo as equipas à Taça UEFA. Se eu quisesse, tinha vergado a mola e tinha ido.

A viver em Braga e a treinar o Guimarães: já pensou nos dérbis?

Se alguém espera que me vá impor em Guimarães por falar mal de Braga, então não me vou impor. Pedi casa em Guimarães não para rejeitar Braga, mas para conhecer as pessoas com quem trabalho. Mas isto não me incomoda nada.|

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